Gabriel Haddad e Leonardo Bora – Carnavalescos da Acadêmicos do Sossego que desfilará no Grupo B em 2016
Enredo: O CIRCO DO MENINO PASSARINHO
- Como é fazer carnaval na Intendente Magalhães?
Gabriel Haddad: Uma vez a Rosa Magalhães me disse, quando eu comentei que estava fazendo uma escola da Intendente Magalhães, que eu era “um herói na saga do carnaval”, e completou: “se botar uma escola na Sapucaí já é difícil, na Intendente ninguém merece, é muito perrengue”. Eu entendo que fazer carnaval na Intendente é um pouco isso, uma saga que pode parecer ingrata, porque são muitos os desafios, e alguns difíceis de serem superados, como a estrutura de trabalho – um problema crônico que afeta as escolas que não estão no “circuito” da Sapucaí. Se já existe um desnível da estrutura das escolas do Grupo Especial para a Série A, entre o Especial e a Intendente (e eu conheço bem a realidade da Cidade do Samba, porque também trabalho lá), existe um abismo: o dinheiro é pouco, os enredos e a linguagem deles precisam ser simples e sofisticados ao mesmo tempo (porque todos precisam compreender, tanto o júri, que tem acesso ao nosso roteiro, quanto os espectadores, que em sua maioria irão conhecer os sambas e os temas na hora, ali, porque a divulgação é pequena), o trabalho de reaproveitamento de materiais (fantasias, esculturas…) é uma regra para driblar o bolso vazio, a infraestrutura da pista está longe de ser a ideal, a mídia às vezes é preconceituosa (quem nunca leu ou ouviu que “tal escola da Sapucaí passou com alas tão feias que estavam no “nível Intendente Magalhães””, um tipo de crítica que não acrescenta nada, apenas desmerece, sem conhecer, o carnaval da Intendente, que é, na verdade, uma aula de criatividade e dedicação, um universo de experimentação muito rico), enfim, tudo o que não temos é “sossego”. Mas esse monte de desafios está longe de ser ruim: eu e o Leo admiramos o potencial criativo e principalmente a alegria desse “outro” carnaval carioca. Buscamos sempre o melhor e mais aprofundado trabalho de pesquisa e criação, independente do lugar em que nosso desfile irá acontecer. Nesses 04 anos apresentando desfiles por lá, já fizemos meio que de tudo, forramos fantasias, pintamos alegorias, coordenamos trabalhos de ferragem e iluminação, serramos madeira, compramos materiais nos 04 cantos da cidade, ajudamos a improvisar o costeiro de um destaque em 10 minutos, enfim, é uma universidade de chão de barracão, algo mais complexo, embolado, que a Cidade do Samba, onde as funções são específicas, tudo é segmentado. Quando eu, Leo, Rafael Gonçalves e Vítor Saraiva estávamos pelo segundo ano na Mocidade Unida do Santa Marta, em 2014, fizemos a alegoria e os dois tripés da escola em 11 dias. É uma loucura, um outro ritmo de trabalho.
- Fale-nos um pouco do enredo da escola?
Leonardo Bora: Numa primeira leitura, o enredo é uma homenagem ao poeta Manoel de Barros, que faria 100 anos em 2016. Mas não é biografia: falamos de imagens poéticas, não da vida do escritor – uma linha de enredo que já foi comum e gerou belíssimos sambas, mas que parecia esquecida, como se a poesia não mais importasse ao carnaval, andasse “fora de moda”. Mapeamos a obra de Manoel de Barros, dos primeiros aos últimos livros, e selecionamos as principais imagens poéticas que aparecem nos versos. Ele é chamado de “poeta das desimportâncias”, porque, desconstruindo a lógica racional da linguagem, fez poemas sobre o chão, as folhas, as formigas, as teias de aranha, as gotas de orvalho, inclusive o “nada”, o pó, as miudezas mais miúdas, aparecendo o Pantanal (que não é o Pantanal trivial, mas um Pantanal universalizante, mítico, como o sertão para Guimarães Rosa) enquanto cenário frequente. Um dos livros que mais estudamos se chama “Livro sobre nada”. Em termos de criatividade, é um universo muito desafiador. Por outro lado, sabemos que o enredo precisa ser legível e que, especificamente no caso da Intendente, a identificação tem que ser imediata, o que não quer dizer “didatismo” ou “facilitação”, redução ao gosto da massa. É um jogo de equilíbrio constante. Foi aí que entrou o circo, a roupagem que encontramos para vestir um enredo com diferentes níveis de leitura – e com boa fundamentação. Porque Manoel de Barros sugere que tudo o que aprendeu em matéria de poesia foi “furando lona de circo para ver os palhaços”; assim ele aprendeu a “transver” o mundo. Um dos versos fala: “Aprendera no circo, há idos, que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria de rir”. Ou seja: fazer poesia é também brincar, um exercício lúdico. Para ele, “brincar com palavras” também era “brincar de carnaval”. Fomos amarrando essas ideias e a partir delas surgiu a “cara” do enredo, que não trata de um picadeiro comum, mas de um “show da natureza” inspirado nos circos concebidos por pintores como Pablo Picasso e Marc Chagall (a quem Manoel de Barros dedicou poemas) – e aí dialogamos com a própria escola, que apresentou, em 1984, o enredo “Natureza – o show não pode parar”, de autoria de Alexandre Louzada. O refrão do samba só falava em passarinhos. Tal enredo, que deu um título de campeã à escola, ainda no carnaval de Niterói, era considerado o melhor enredo do Acadêmicos do Sossego pelo ex-presidente Gustavo Faria Gomes, falecido logo após o último carnaval. Ele desejava ver novamente a sua escola de coração levar para a avenida um enredo sobre a natureza, porque, na opinião dele, não havia temas mais bonitos que aqueles ligados à infância e à natureza. Nesse sentido, o enredo também é uma homenagem a ele e à memória da escola, que já cantou os “passarinhos”, ainda que sem a referência ao “poeta que via pelos passarinhos”. O símbolo do Sossego é uma lira, a origem da música e da poesia – daí “gênero lírico”, “lirismo”. As cores são o azul e o branco, as cores que mais aparecem nos poemas de Manoel de Barros, que exaltava os “perfumes do azul” e a brancura imaculada das garças. O que se pode esperar, então, é um visual que irá misturar natureza e universo circense, folhas caídas no chão e estrelas em constelação no céu, tudo sob o olhar ilimitado da infância, de um menino que “quer crescer para passarinho” e que, diante da lona de um circo, consegue voar infinitos.
- Quais são as expectativas da escola para este carnaval?
Gabriel Haddad: Acreditamos num belo desfile, condizente com a história vitoriosa do Sossego. Tudo foi pensado nesse sentido: queremos que os componentes vejam a escola na concentração e digam: essa é a nossa escola! Por isso usamos muito azul e branco. Parece que no último ano esse envolvimento ocorreu menos, e isso prejudicou a nossa apresentação. Fomos muito bem avaliados nos quesitos plásticos, o enredo tirou 10 e foi premiado, mas faltou emoção, e carnaval é festa, é emoção. O samba será fundamental para isso: apostamos demais na ousada (sem rimas e sem refrão) composição da parceria de Felipe Filósofo, Sergio Joca, Marcelo Bertolo, Ademir Ribeiro, Fabio Borges e Fabio Silva – samba que é considerado, por alguns pesquisadores, o melhor do carnaval de 2016. Voltando ao visual, temos falado que “intensificamos os azuis”, especialmente o “azul-Sossego”, que é o azul royal. É uma cor difícil de trabalhar na Intendente, por conta da pouca iluminação, mas entramos de cabeça. A escola sentia falta de se olhar vestindo as suas cores. Quando pessoas da comunidade visitam o barracão e veem o carro abre-alas, que está quase finalizado, ficam surpresas porque ele é majoritariamente azul e branco, inclusive chegam a confundir com outras escolas, o que se torna engraçado, porque pressupõe que o Sossego não mais usava as suas próprias cores. Devem imaginar que representaríamos o “circo da natureza” com verde, o que é um engano. Já ouvimos que “há muitos anos o Acadêmicos do Sossego não aparece tão azul e branco” e que “finalmente a escola está bem representada nas suas cores”. Claro que teremos, pontuando o desfile, a cartela cromática toda, mas a base, e essa é uma lição de Eduardo Gonçalves e Maria Augusta, é o azul.
- Como está o barracão da escola (fantasias e alegoria(s))?
Leonardo Bora: O trabalho no barracão das alegorias está em fase de acabamento. Sobre as fantasias, na base do reaproveitamento de materiais (a melhor saída para driblar a alta dos preços), o trabalho foi dividido em dez ateliês espalhados por Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo, algo mais para o “fundo de quintal”, bem no espírito do enredo, que fala de “quintais maiores que o mundo”. Visitar e orientar tantos lugares diferentes é um desafio, mas não conseguiríamos simplesmente “largar” os figurinos e deixar o trabalho correr solto. Procuramos nos organizar ao máximo (e contamos com três diretores de carnaval para isso, Almir Jr., Thiago Lepletier e Vinícius Natal) para acompanhar todas as frentes com a mesma atenção, mantendo olhos no barracão, em Campinho, e nos ateliês – até porque o resultado final precisa ter uma unidade. Não é fácil, mas é possível. Neste ano estamos vivendo uma situação inédita: as fantasias estão sendo entregues com mais de uma semana de antecedência e a alegoria poderia desfilar amanhã, restam apenas detalhes. Mas prefiro não comemorar porque sou ressabiado – coisa de paranaense.
- Como virá a escola, em relação a nº de alas, componentes, quantos setores serão o desfile?
Gabriel Haddad: Teremos uma alegoria (carro Abre-Alas), um tripé e 17 alas. Desfilaremos com mais ou menos 650 componentes. Não há uma setorização fechada, mas o colorido segue um pouco o desenrolar de um dia: começamos com o raiar do sol, terminamos com a noite escura; começamos na terra, entre raízes, folhas, flores e orvalho, e terminamos entre as estrelas do céu, brincando com a ideia de poeira cósmica, que é a nossa origem.
- Deixem-nos uma mensagem para o povo que acompanha o carnaval da Intendente.
Gabriel Haddad: Desejo que todos aproveitem ao máximo o carnaval da Intendente e que aqueles que nunca foram, porque têm preconceito ou mesmo desinteresse, procurem se informar mais sobre a realidade dessas tantas escolas – afinal, para quem gosta de escolas de samba, hoje, a Intendente Magalhães é o lugar que recebe o maior número delas, mais de 40.
Leonardo Bora: Pegando esse gancho, eu acredito que mais do que simplesmente comparar com os desfiles da Sapucaí, principalmente com o Grupo Especial, é preciso entender que a Intendente Magalhães é um outro lugar de fala, de festa, de disputa – uma outra realidade carnavalesca na cidade do Rio de Janeiro, com suas particularidades, seus problemas e suas maravilhas. Certamente, teremos grandes desfiles – e espero que a nossa escola apresente um deles. Em 2015, depois do desfile do Acadêmicos do Sossego, quando eu e o Gabriel assinamos o enredo “Banananás”, eu vi, decorando as ruas e uma pracinha dos arredores, os estandartes que havíamos (eu, Gabriel, Rafa e Vítor) confeccionado com recortes de tecidos para o abre-alas do Santa Marta, no ano anterior. A decoração do carro virou decoração de rua, uma ressignificação que sintetiza o espírito do que é trabalhar em escolas com menos recursos. Achei aquilo tão lindo, tão poético, ao amanhecer, que não consegui tirar uma foto para recordar futuramente. A Intendente tem dessas sutilezas.
Muito obrigado Gabriel Haddad e Leonardo Bora pela participação e bom carnaval!
*Observação: Na foto de abertura do tópico estão Gabriel Haddad (à esquerda) e Leonardo Bora.